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Justiça com as próprias mãos: Bahia registra pelo menos 45 linchamentos desde o ano passado

Eric matou e estuprou Maria Amélia na creche dela (Foto: Reprodução/Arquivo CORREIO)

As imagens correram pelos celulares. Vídeos e fotos exibiam, sem qualquer aviso, um jovem negro ser espancado e receber golpes de enxada de um grupo de pessoas. Às partes do corpo sem vida, atearam fogo. E, para completar a sequência de horror, carregaram, em um carrinho de mão, o que restou do rapaz. Despejaram em frente à Creche Escola Menino de Jesus, no Arenoso.

Era novembro do ano passado, e o rapaz entrou para a estatística como um dos casos emblemáticos de linchamento dos últimos tempos. Mas outros continuaram acontecendo – o mais recente, no sábado (1º), foi de um motorista suspeito de atropelar e matar três pessoas em uma estrada na zona rural de Araçás, no Nordeste do estado.

Um levantamento realizado pelo CORREIO mostrou que a Bahia registrou pelo menos 45 casos de linchamento ou tentativas de linchamento de 2016 até julho deste ano – desses, 32 foram em Salvador. O número não destoa da realidade do Brasil – tido por especialistas como o país que mais comete linchamentos no mundo. Há, pelo menos, um linchamento ou tentativa por dia. E Salvador se destaca entre as cidades que mais têm esse sangue nas mãos.

“O que se pode dizer é que a Bahia, e Salvador, em particular, é um dos lugares em que há maior incidência de linchamentos, depois de São Paulo e antes do Rio de Janeiro”, diz o sociólogo e professor de Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), José de Souza Martins. Ele é autor do livro Linchamentos – A Justiça popular no Brasil (Editora Contexto, 2015), que pesquisou 2.028 casos desse tipo de crime no país.

Com o motorista linchado em Araçás, o número de linchamentos em um ano e meio passou a 16. A maioria das vítimas desses linchamentos era suspeita de tentativa de assalto, mas alguns eram apontados por estelionato, feminicídio, homicídio e estupro.

O caso do Arenoso
Esses dois últimos crimes foram a razão para o ataque ao jovem negro – o de novembro. Tinham passado apenas cinco dias da morte da técnica em Enfermagem aposentada Maria Amélia Santos, 63 anos. Ela foi morta dentro da creche onde o corpo foi abandonado e da qual era dona. Foi encontrada pela filha mais nova em um quartinho nos fundos, onde costumava dormir. Além de ter sido assassinada, foi estuprada. Mas a barbárie da história continuou com o episódio seguinte, com o linchamento do jovem negro – suspeito de ter cometido o crime.

Moradores do Arenoso pediam justiça pela morte de Maria Amélia. Erci foi vítima de um linchamento dias depois (Foto: Evandro Veiga/ Arquivo CORREIO)

Era Eric Carvalho da Conceição, 24 anos. Ele teria sido visto por testemunhas saindo da casa de Maria Amélia e era conhecido na área – costumava frequentar a creche, antes de ser expulso do Arenoso, quatro anos atrás, por roubar moradores. Nos primeiros dias após o crime, a Polícia Civil não tinha certeza de que se tratava dele. No entanto, o Departamento de Polícia Técnica (DPT) confirmou a identidade do jovem através da análise das impressões digitais. Segundo o DPT, as impressões digitais são sempre a primeira opção, quando a vítima está irreconhecível. Se as impressões estiverem destruídas, fazem o exame pela arcada dentária. Em último caso, se nenhuma das alternativas for viável, há o exame de DNA.

Maria Amélia foi morta na creche
(Foto: Tailane Muniz/Arquivo CORREIO)

Filha de Maria Amélia, a professora Maria Cristina dos Santos, 44, conta que não estava em casa no momento do linchamento. Soube depois que começou a receber ligações. Também diz que não sabe quem participou. Entende a revolta, claro – sua mãe foi a primeira moradora daquele loteamento. Depois que fundou a creche, há 28 anos, boa parte dos atuais moradores passaram por lá.

“A gente não queria que nada disso acontecesse. Minha mãe jamais seria a favor disso. Da outra vez, quatro anos atrás, quando ele roubou, as pessoas estavam dizendo que ladrão tem que morrer. Ela foi uma das primeiras a dizer que não era para fazer (mal a ele) e ele foi expulso do bairro. Do jeito que eu estou sofrendo, a mãe dele está sofrendo também. Só peço a Deus que console todo mundo”, desabafa.

Mais de 50 pessoas participaram, de alguma forma, do linchamento do jovem (que pode ou não ser Eric). Uma moradora ouvida pelo CORREIO conta que, quando soube do que tinha acontecido, avistou entre 30 e 40 pessoas assistindo ao corpo ser queimado. A maioria tinha ido embora. “Alguns filmavam e tiravam foto, mas quem fez já tinha ido embora”. Segundo ela, o rapaz foi encontrado em Itapuã, por pessoas ligadas ao tráfico de drogas.

Depois, foi trazido, amarrado, em um carro, para o Arenoso. Ele teria sido linchado, na verdade, por traficantes que não toleram crimes como o estupro na comunidade. Só que, ainda assim, ela acredita que a maior parte dos moradores “não achou ruim”. “Pelo que ele fez, a maioria acaba achando justo. É aquela lei: olho por olho, dente por dente”.

Atropelo e morte
No caso de Araçás, o delegado titular da cidade, Ariston Brito, já prevê as dificuldades que terá para identificar os autores do crime que matou Marcio Lima Santos, 38. Ele foi espancado até a morte depois de atropelar e matar três pessoas – incluindo um adolescente de 14 anos e um idoso de 65. O crime aconteceu no Km 19 da BA-504.

Por se tratar de uma zona rural, não há câmeras de segurança. E, para completar, é possível que os próprios moradores da região onde aconteceu tenham cometido o assassinato, acredita a polícia.

Depois de matar o motorista, o grupo ateou fogo ao veículo (Foto: Reprodução/Alta Pressão Online)

Apesar de o acidente ter acontecido em uma rodovia, de acordo com o delegado, há muitas casas de moradores na região. O local, conhecido como Fazenda da Onça, é um povoado do município.

“Se tivesse uma câmera, seria muito mais fácil, ou até se as pessoas quisessem falar, como acontece quando eles acreditam que a pessoa linchada era inocente. Nesse caso, como as vítimas atropeladas eram pessoas da região e o pessoal que linchou também deve ser, por já estar no local, fica muito mais difícil elucidar”.

Ainda segundo o delegado, mesmo que nenhum autor do linchamento seja identificado, o inquérito deve ser remetido ao Ministério Público do Estado (MP-BA).

Crimes soteropolitanos
A história de Salvador com linchamentos é antiga: foi aqui o primeiro desses crimes que se tem registro no Brasil. Foi em 1585, sofrido por um índio cristianizado que se apresentava como Papa. “Entre os indígenas convertidos pelo trabalho missionário surgiram, em diversos pontos do Brasil de então, movimentos messiânicos, geralmente protagonizados por pajés, que incorporavam à sua identidade elementos da identidade dos padres. Esse índio atraiu seguidores não só entre índios e mestiços, mas também entre portugueses. Acabou morto pela multidão que, antes, cortou-lhe a língua”, conta o professor José de Souza Martins.

Embora Salvador se destaque entre as cidades brasileiras, segundo a pesquisa do professor, é difícil encontrar dados oficiais sobre o tema. Isso porque não existe o crime de ‘linchamento’. Esses delitos costumam ser enquadrados em ‘lesão corporal seguida de morte’ ou em ‘homicídio’ com as devidas qualificações – a depender do que a polícia e a Justiça interpretem que foi a intenção dos autores.

Além disso, a própria identificação dos autores de um linchamento é uma das dificuldades. Para a delegada Pilly Dantas, titular da 3ª Delegacia de Homicídios (Baía de Todos os Santos), o fato desses crimes serem aceitos por parte da população contribui para o problema. “E, além de identificar, a gente precisa individualizar. Ou seja, identificar o que cada um fez dentro daquilo”, explica. Para ela, as câmeras monitoradas pela Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP-BA) ajudam a acompanhar esse tipo de situação.

A massa linchadora, inclusive, não tem idade, cor ou condição social. Nos últimos 60 anos, segundo José de Souza Martins, pelo menos um milhão de brasileiros já participou de, no mínimo, um linchamento. “Temos desde linchamentos comunitários, com a participação de pequenos grupos, geralmente de umas dez a vinte pessoas, até linchamentos praticados por multidões de mais de mil pessoas”.

Todos são movidos por uma vingança social – para o Direito, uma ‘vingança privada’ – além de um descrédito, pela população, na capacidade de punição, por parte do estado. “E chegamos a esse momento que retorna a um estado de barbárie. Nós temos que pensar que as garantias republicanas constitucionais da ampla defesa e do processo legal são garantias do estado, para que se mantenha a ordem e o próprio funcionamento da república. Imagine uma situação em que o cidadão seja apenas acusado e aquela comunidade acaba cometendo esse ato”, pondera o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA), Eduardo Rodrigues.(Correio 24 horas)

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